Em 1848, Phineas Gage era supervisor de construção de ferrovias da Portland & Burland Railroad. Impávido e dotado de um senso de responsabilidade incomum, o jovem e zeloso capataz – ele tinha apenas 25 anos de idade – reservava para si as tarefas mais perigosas. Poupando os seus subordinados das atividades que envolvessem sérios riscos, assumia pessoalmente a responsabilidade de explodir as rochas situadas no traçado da estrada de ferro.
Naquele fim de tarde, em Vermont, Estados Unidos, o jovem capataz protagonizou um acidente histórico, que permitiu à Ciência constatar que os danos ao córtex cerebral afetam a personalidade do indivíduo.
Uma carga de pólvora fora colocada pelo próprio supervisor na abertura de uma rocha. Então Gage empunhou uma barra de ferro de um metro de cumprimento e 2,5 centímetros de diâmetro para socar o orifício. Inadvertidamente, a barra resvalou na abertura do buraco. O atrito ocasionou uma fagulha, que fez a pólvora acender. Conforme esclarece R. M. E. Sabbatini, a explosão que se seguiu “projetou a barra, com 2.5 cm de diâmetro e mais de um metro de comprimento contra o seu crânio, a alta velocidade. A barra entrou pela bochecha esquerda, destruiu o olho, atravessou a parte frontal do cérebro, e saiu pelo topo do crânio, do outro lado. Gage perdeu a consciência imediatamente e começou a ter convulsões. Porém, ele recuperou a consciência momentos depois, e foi levado a médico local, Jonh Harlow que o socorreu. Incrivelmente, ele estava falando e podia caminhar. Ele perdeu muito sangue, mas depois de alguns problemas de infecção, ele não só sobreviveu à horrenda lesão, como também se recuperou bem, fisicamente.”
Todavia, o zeloso Gage anterior à explosão, “descrito como equilibrado, meticuloso e persistente quanto aos seus objetivos, além de profissional responsável e habilidoso”, conforme pondera Cristina Marta Del-Ben, simplesmente desapareceu. Em seu lugar, assomou, conforme concluiu o neurobiologista António Damásio, “uma pessoa impaciente, com baixo limiar à frustração, desrespeitoso com as outras pessoas, incapaz de adequar-se às normais sociais e de planejar o futuro. Não conseguiu estabelecer vínculos afetivos e sociais duradouros novamente ou fixar-se em empregos.”
Embora tenha milagrosamente sobrevivido à explosão, o capataz, que permanecera o resto da vida com a barra de ferro transfixada na face, tornou-se mesmo uma pessoa completamente diferente. Pouco tempo depois ao acidente – acresce Sabbatini – Phineas começou a ter mudanças surpreendentes na personalidade e no humor. “Ele tornou-se extravagante e anti-social, praguejador e mentiroso, com péssimas maneiras, e já não conseguia manter-se em um trabalho por muito tempo ou planejar o futuro.” O Phineas sobrevivente – pontuam William K. Purves, David Sadava e Gordon H. Orians – “era briguento, mal humorado, preguiçoso e irresponsável. Tornou-se impaciente e obstinado, passando a usar um linguajar rude nunca antes utilizado por ele.” “Phineas já não é mais Phineas”, diziam seus amigos.
Estudos recentes, desenvolvidos pelos neurobiologistas portugueses Hanna e António Damásio, indicam que a maior parte dos danos sofridos por Gage incidiu sobre a região ventromedial dos lobos frontais, em ambos os lados, sem que a área cerebral responsável pela fala e funções motoras fosse afetada. Os cientistas, da Universidade de Iowa, empregaram técnicas de computação gráfica e de tomografia cerebral para avaliar a possível trajetória da barra de ferro, concluindo que as alterações de comportamento provavelmente decorreram da lesão. Observaram os pesquisadores que outros pacientes, com lesões semelhantes à de Gage, igualmente apresentaram déficits nos processos de decisão racional e no controle das emoções.
William K. Purves, David Sadava e Gordon H. Orians apontam que Gage passou o resto de sua existência como um desocupado, ganhando a vida contando a sua história, exibindo a barra de ferro e as suas cicatrizes. Ele morreu treze anos depois do acidente, pobre e epilético. Seu crânio, sua máscara mortuária e a barra de ferro estão em exibição no Museu da Faculdade de Medicina da Universidade de Havard.
O terrível acidente que vitimou Phineas Gage permitiu à medicina constatar, em definitivo, que a personalidade do indivíduo reside no encéfalo. O acidente tornou-se um caso clássico nos livros de ensino de neurologia, já que, conforme pondera Sabbatini, a parte do cérebro afetada – os lobos frontais – passou a ser associada às funções mentais e emocionais que, no caso de Gage, ficaram alteradas. Ou, em síntese, como disse António Damásio,"Gage foi o início histórico dos estudos das bases biológicas do comportamento".
Fontes:
R. M. E Sabatini, “O espantoso caso de Phineas Gage”, disponível em:http://www.cerebromente.org.br/n02/historia/phineas_p.htm .
William K. Purves, David Sadava, Gordon H. Orians et al. : “Vida: a Ciência da Biologia”.
Jim Hiks et al. : “Para além da mente”, Col. “Mistérios do desconhecido”, Times-Life.
Cristina Marta Del-Ben: “Neurobiologia do transtorno de personalidade anti-social”, disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832005000100004.
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